
O indiferenciado de que o sagrado se alimenta é, em vez, o cenário pré humano do qual o homem se emancipou com um gesto violento. Falamos da violência subjacente a toda decisão, porque de-cidir significa cortar (de-caedere), e, portanto, estabelecer de uma vez por todas o sentido das coisas, eliminando com um golpe todos os significados contíguos e todas as oscilações possíveis de que se nutrem as mitologias, os símbolos, as fantasias, as alucinações que têm relação com aquele cenário pré-humano, que é o cenário do indiferenciado.
Regra da razão é com efeito o princípio de identidade e não-contradição, que afirma que "isto é isto e não outra coisa". O princípio que a rege é a disjunção (em grego, diaballein), que veta que uma coisa seja "isto e também outra coisa", como ao contrário prevê a linguagem simbólica (em grego, syn-ballein), da qual se alimentam as narrativas míticas, mágicas, poéticas e religiosas. Pela razão, de fato, é impossível dizer do mesmo ser que é Deus e homem, ou Deus e animal, que é benéfico e maléfico, que está abandonado, exposto, ameaçado e, ao mesmo tempo, que é invencível e divino; que é macho e ao mesmo tempo fêmea, como a linguagem simbólica não cessa de repetir.
O Deus que habita a região do sagrado não sabe manter nem mesmo uma identidade própria, e por isso se entrega às metamorfoses mais variadas sem fidelidade e sem memória. A identidade, com efeito, é a outra face da diferença, é o que se obtém porque não se con-funde com todas as coisas; ao contrário, Deus é aquele panorama indistinto, aquela reserva de toda diferença, aquela indecifrabilidade que os homens, depois que dela se separaram, perceberam ser seu horizonte de procedência e a mantiveram distante, fora da sua comunidade, no mundo dos deuses, que por isso antecedem os homens.
O mundo que eles habitam é o mundo do símbolo na acepção grega de syn-ballein, "pôr junto", onde não há distinção, onde a incapacidade de reconhecer a diferença une-se à tendência de aboli-la com um gesto violento. A noite do sagrado é uma noite inimaginável, que não é sequer nem o contrário do dia, porque é noite e dia, luz e trevas. É noite sem face, à qual se poderia aplicar a expressão de Edmond Jabes: “ Todos os rostos são o Seu, e essa é a razão por que Ele não tem rosto”.
Se o sagrado se afasta muito, o risco é o esquecimento das regras que os homens aprenderam para se proteger, e então o sagrado irrompe e a sua violência produz a dissolução da comunidade ou, na perspectiva psicológica, da personalidade. Desse modo, a existência humana fica a cada momento governada pelo sagrado, do qual não deve aproximar-se muito para não ser dissolvida, mas de que não deve tampouco afastar-se demais para não perder os efeitos da sua presença fecundante.
Como mediador entre o sagrado e o profano, entre homens e deuses, está o sacrifício.O princípio do sacrifício é a destruição, mas o que o sacrifício destrói não são tanto as primícias da colheita ou as cabeças de gado, mas a relação que habitualmente o agricultor tem com a sua colheita e o fazendeiro com o seu gado. Destruindo a relação, o sacrifício subverte uma ordem, põe fim a laços habituais que costumeiramente temos com as coisas, não para estabelecer outros, mas para criar aquele vazio que as cinzas do sacrifício bem representam como distância que nos separa das relações aparentemente inevitáveis que temos com a realidade.
O mundo aberto pelo sacrifício opõe-se ao mundo real como o excesso festivo à moderação do dia útil, como a embriaguez à lucidez. Não há efetivamente medida senão nas regras da razão que garantem a identidade do objeto consigo mesmo, não há lucidez senão na consciência distinta dos objetos. Mas o sacrifício, reduzindo a migalhas o objeto sacrificado, dissolvendo-o nas cinzas, escancara aquela noite indistinta e infinitamente suspeita que, no silêncio da razão, abre ao indiferenciado, ao indeterminado.
É no sacrifício que são sacrificadas a realidade e as relações de realidade, laboriosamente construídas pela razão, porque o sacrifício é um matar que expõe sobre o altar sacrificial todos os sentidos e todos os significados que o sagrado indistintamente abriga, mas que a razão se obriga a remover para poder ordenar a realidade segundo critérios sem os quais seria impossível viver. Sacrificando esses critérios, o sacrifício aceita passar de uma ordem a outra, onde o Outro não é o contrário da ordem sacrificada, mas outra coisa totalmente diferente.
É preciso ter presente aqui que a remoção do sagrado implica a absolutização do cosmo da razão, razão essa que, quando se torna segura de si, não mais entreabre a porta atrás da qual se agita a violência do indiferenciado e o caos. Os ritos sacrificiais das culturas primitivas, dos quais a missa cristã é um vestígio esmaecido, tinham o objetivo de entreabrir essa porta. Mas fazendo acordos com a razão, com a boa educação, com a cultura, com a moral civil, a religião se tornou evento diurno, e por isso fala de moral sexual, de contracepção, aborto, divórcio, de escola pública e privada. E assim, ocupando-se com reflexões que toda sociedade civil pode ela mesma tranqüilamente fazer por si, deixa a gestão da noite indiferenciada do sagrado à solidão de cada um dos que procuram remédios na farmácia, ou à loucura dos grupos que produzem promessas vazias, com freqüencia trágicas.
Não há mensurabilidade entre o saber humano e o saber divino, e portanto não se pode comprimir o juízo de Deus nas regras com que os homens organizaram a sua razão e elaboraram as suas morais. Deus está além do verdadeiro e falso, e igualmente do bem e do mal. Aliás, necessidade qual seria a de Deus se o seu juízo fosse legível nas leis da moral que cada comunidade pode elaborar por si? Um Deus retribuidor que adota a regra da razão, um Deus contabilista, um Deus jurídico, é um Deus incapaz de graça. É preciso lembrar isso a todos os que interpretam a Salvação como um direito que pode ser adquirido com boas ações sobre a terra, a todos os que se julgam a salvo e se esquecem de que, no regime do sagrado, à sombra das bênçãos de Deus, sobranceia jamais separada, a possibilidade da maldição.
Nada poderá salvar os homens que, atendo-se ao presumido conhecimento do bem e do mal, pensavam que honravam a Deus. E isso porque, por um lado, a ambivalência de Deus está além das equivalências das morais humanas, e por outro porque a transcendência e inacessibilidade do seu juízo impedem que uma religião, em seu nome, possa apropriar-se do princípio do bem e do mal, que é enfim o segredo que Deus esconde e que em vão a serpente promete revelar.
É por isso que a relação com Deus exige o sacrifício do Eu. A visão de cima, a epopteia, tem a sua contrapartida na cegueira pelas coisas da terra. Essa palavra significa literalmente “olhar de cima” e não atrás para reconstruir o proóprio passado ou para procurar a própria identidade. Desse destino não escapa nem mesmo o filósofo, nem mesmo o adivinho – e o poeta grego. Mas que visão oferecem as Musas ao poeta em troca da cegueira? Homero, que a tradição tem por cego, invoca a ajuda das Musas para saber o que deve dizer, e não como deve dizê-lo; a invocação é para o conteúdo, não para a forma. O poeta portanto é um vidente. O latim vates conserva traços dessa unidade originária. Hesíodo atribui às Musas e reivindica a si o mesmo conhecimento das "coisas presentes, futuras e passadas" que Homero atribui ao adivinho Calcante. Cegos à luz, vêem o invisível. O Deus que os inspira lhes revela as partes do tempo inacessíveis aos mortais: o que aconteceu uma vez e o que ainda não é. E enquanto o adivinho deve responder às preocupações relacionadas ao futuro, o poeta se orienta para o tempo antigo que não é o passado, mas o tempo originário, a realidade primordial da qual saiu o cosmo. Nessa geografia do sobrenatural, o passado está além com relação ao mundo dos vivos, é o mundo dos deuses a que retorna tudo o que deixou a luz do Sol. Desse mundo a alma do poeta pode aproximar-se, entrar e voltar livremente por dádiva da Mnemosyne, a Memória, de quem as Musas são filhas.
Entre a ordem dos trabalhos e a ordem dos deuses, que o poeta inspirado viu com a sua epopteia, há estreita relação. Aliás, para que o rito religioso tenha eficácia é necessário que quem dele participa compartilhe o mesmo mito que, pelas analogias e relações, está em condições de ligar a ordem originária e imutável que está no céu com a ordem mutável da terra. Quanto mais o mito é convincente nas identidades e conexões simbólicas que produz, tanto mais o comportamento é eficaz. O poeta tem a tarefa de fixar na ordem divina, que é estável e não corroída pelo tempo, a regra que os homens devem seguir.
Na verdade, a divindade não é a ordem, mas a referência além do humano em que a humanidade sempre fixou as regras que se estabeleceu para evitar que se tornassem arbitrárias. À divindade só será possível renunciar quando os homens aceitarem ser os autores das regras, mas para essa passagem será necessária uma grande maturidade antropológica em condições de suportar a ausência de uma ordem natural ou divina, e portanto de habitar sem angústia a ordem da convenção. A isso proverá a filosofia com a conversão da alma de sede da memória a sede da produção de idéias e construtos mentais. Aqui também começa o desencanto do mundo e o afastamento do sagrado.
Talvez tenha sido por isso que Holderlin tenha dito: “Dia e noite, um fogo divino nos impele a abrir o caminho. Vamos! Olhemos no Aberto, procuremos alguma coisa apropriada, embora ainda distante." Esses versos fascinaram Martin Heidegger, para quem o Aberto é a condição para que as coisas possam aparecer pelo que são e não pelo que valem. Mas para aproximar-se do Aberto é preciso um pensamento capaz de sair do âmbito do en-cerrado na previsão do pensamento que calcula, e de arriscar no Aberto des-cerrado do pensamento que pensa. Ao pensamento que pensa corresponde na verdade aquele dizer que não é mero calcular e numerar mas, dizendo, pôe a coisa em relações que, ultrapassando o recinto delimitado do cálculo, evocam os mortais e os divinos, o céu e a terra.
Desse dizer é capaz Holderlin, que não canta por esta ou aquela coisa, mas por nenhuma coisa. Essa coisa alguma não é o nada, mas aquilo que não se diz do pensamento que calcula. Hõlderlin, e com ele os poetas, escreve Heidegger,"dizem o calado", dizem aquela total ausência de proteção que o homem tenta em vão mascarar com o cálculo e com o projeto, com a previsão e com a antecipação, quando não ousa sair para o Aberto e arriscar sentidos imprevistos.
Por isso os poetas são os que mais se arriscam, "porque arriscam o próprio ser e, portanto, arriscam-se na região de. ser",enquanto os outros se detêm no comércio do ente. Os primeiros arriscam a linguagem, por isso "são os que dizem", os segundos usam a linguagem e se detêm nos modos de dizer. A estes a linguagem não diz, a linguagem serve e por isso retira-se do caminho ao longo do qual o pensador que fala do ser encontra o poeta que fala do sagrado. Nada se sabe do colóquio que mantêm, apenas é permitido ouvir que "O sagrado une ao Divino. O Divino aproxima de Deus".
O lugar que o sagrado deixou vazio é hoje ocupado por palavras religiosas que, fechadas no cálculo dos valores, limitam-se a circunscrever o recinto do agir. Assim a essência do homem empobrece quando, à sombra de religiões cuja única preocupação parece ser a dimensão ética, procura dar sentido à dor, educar para o amor, preparar-se para a morte. As religiões, que parecem preocupadas apenas com a ética, atribuindo a Deus um nome, calçaram o caminho do homem com preceitos e mandamentos, bons apenas para as disputas que nunca conheceram a discrição do silêncio, a prevaricação do dizer. É um dizer que, fixando as fronteiras do bem e do mal, circunscreve um mundo fechado que afasta de si o Aberto e oculta o Sagrado que se anuncia lá onde a proteção inexiste, onde o risco ameaça, onde nada está protegido nem antecipadamente posto a salvo, onde a terra que se habita já é de imediato terra estranha.
O Aberto, pois, é a possibilidade infinita de sentido que as coisas não cessam de difundir e a razão de conter. Sentido, este, que a poesia grega conhecia. Poesia que, diante do cosmo da razão, o único que os homens podem habitar, sabe de que fundo ele se libertou e por isso não fecha o abismo do caos, não ignora a terrível abertura para a fonte opaca e obscura que questiona o fundamento mesmo da racionalidade, porque sabe que é desse mundo que procedem as palavras que depois a razão ordena de maneira não oracular e não enigmática.
Por isso que aproximar-se dos mitos significa evitar antecipadamente a armadilha do racionalismo que, com suas palavras ordenadas e justificadas, suprimem aquela vigília da origem das palavras a que a narrativa mítica pretende retornar, desvelando não uma cena muda, mas aquela cena em que todo sentido ainda não está totalmente extinto na palavra. A palavra expressa, com efeito, não é senão cadáver da palavra mítica, e é necessário encontrar, com a linguagem da própria vida, a Palavra antes de todas as palavras.
2 comentários:
nada disso, nao houve emancipação alguma. qualquer tentativa de divorcio do sagrado escraviza o homem ao cosmos fisico ilimitado que limita potanto aquilo que o fundamenta e é ilimitado e metafísico. por que o homem existe?
responda essa.
ô Minino! Tô sentindo saudade de um post novo. Ler o que você escreve me faz feliz! Beijos de mim.
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