
Por algum motivo ignorado, as pessoas se desesperavam. Se não era guerra, epidemia, o que explicaria o fato de quase duzentos homens montarem um bloqueio com seus imensos coturnos enfurnados na lama? Sei que não haver saída é uma situação desesperadora e até alarmante – mas o que explicaria tamanho rebuliço, tamanho alvoroço, tal como um guisado quente procurando espaço para expandir o seu caldo grosso?
E o rebuliço era tamanho que ocupava todo o espaço que antes estava reservado para o tempo. Já não havia mais tempo, e quando não há mais tempo a palavra de ordem é: fuja. Fuja antes que a ameaça ignorada te imobilize pelos braços. Antes que ela te detenha de bruços. De modo que, não havendo tempo sequer para me certificar do que estava acontecendo, me juntei a massa anônima que corria desenfreada, uns ainda com roupas de dormir, outros com a cara estupefata. Sabendo que deveria correr e fugir, e ignorando o motivo que agora também me afligia, procurava ruelas desguarnecidas por onde pudesse escapar sem ser detido.
Sei que o que conto não faz sentido, como também não fazia sentido transpor as fronteiras e ir em direção a liberdade que é dada pela imensidão obscura da noite, que sufoca pelo o que ela tem de infinito e que agasalha pelo mesmo e paradoxal motivo. Sei que não fazia (e não faz) sentido algum ir nesta direção – mas deve haver um momento em que já não há mais outra alternativa, outro caminho possível. Deve haver esse momento, onde tomamos o caminho evitado e inevitável. Onde damos o salto. Tal como o girino descobre, pela intumescência que vai se transformando em pata, que é chegada a hora de transpor a superfície cristalina da água e adentrar nesse mundo de oxigênio e carbono.
Nunca soube que o mundo fosse tão estranho. Nunca vi as pessoas tão desesperadas, bem como nunca entendi aquele brilho que se carregava nos olhos, um brilho fosco. Entre o vai-e-vem desenfreado de cotovelos e braços sempre surge um rosto: um rosto conhecido. Um rosto amigo.
Digo o nome desse amigo: Geórgia. É ela quem também se ocupa o tempo todo. É ela quem encontro no meio do tumulto e sequer tem tempo para conversar sobre o ocorrido. Ela diz estar com pressa, que tem de reaver um vestido, e dá meia-volta, decidida a fazer o caminho contrário ao da massa anônima quando a detenho e lhe pergunto:
- O que está acontecendo?
Ao que ela responde:
- Estou correndo. Desculpa, a gente conversa depois. Tenho que pegar um vestido.
- Vestido?? Mas não há tempo para pegar vestidos. E mais: você não deve fazer o caminho de volta.
- Desculpa, estou com pressa. A gente conversa depois. Tenho que voltar pra casa.
- Mas você não pode voltar pra casa!
- Desculpa, por favor, me larga! Estou com pressa!!
E, num movimento súbito, empurrou o ar como se puxasse a barra de um cortina grande e vermelha, querendo acabar com o espetáculo e deixar os espectadores sem resposta e sobreaviso. Num súbito, tinha que detê-la – e para detê-la tinha que dizer algo que fosse tão grave quanto horrível. E disse:
- Mas.. o mundo está acabando!
E ela descerrou a cortina vermelha antes que pudesse me certificar que ela não queria conversar, tampouco dar ouvidos. Deu meia-volta sobre si com sua cortina vermelha e flamejante e saiu correndo tão subitamente e tão desajeitada que a cortina rodopiou em torno do seu corpo, formando a saia que tanto procurava. Se fosse uma pessoa que parasse para refletir, se não fosse surda aos acontecimentos, perceberia a saia que agora adornava seu corpo, a que dedicava tanto zelo. E se também eu não fosse surdo, perceberia a hipótese trágica que havia lançado ao léu, e que dava um sentido repentino a todos esses fatos estranhos e obscuros que atordoavam a minha mente inquieta e impávida. Mas como não sei correr e pensar ao mesmo tempo, só me restava a alternativa de reservar a reflexão para um momento futuro, mesmo sabendo que procedendo dessa maneira corria o risco de tropeçar num troço, de bater a cara contra um muro.
Mas mesmo assim segui meu caminho, deixando a Geórgia pra trás, e indo em direção a qualquer viela da cidade que, por um motivo qualquer, não tivesse guarda ou cancela, sempre imaginando que encontraria esse caminho atrás de uma praça erma e molhada que ficava num bairro de subúrbio.
Porém, tendo explicado tudo o que expliquei até agora, você acha que havia alguma condição de me perguntar onde ficava esse bairro de subúrbio? Havia alguma condição de tomar qualquer caminho estimado, contando já com o imprevisto de não haver ônibus, e de que todos os motoristas estavam também desesperados, e de que contra mim caminhava toda uma massa anônima?
Ou você vai na mesma direção ou você vai contra, e não há outra via. Todos os rios caminham até o oceano: mas há um oceano de pessoas querendo, agora, ocupar uma ilha. Faça os cálculos (se você for uma pessoa que tiver tempo para fazer cálculos) e tenha uma visão dessa geometria, uma noção do que seja o absurdo do quadrado redondo.
Posso estar redondamente enganado, mas não posso ficar sentado, observando esse espetáculo que é o mundo.
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