quinta-feira, 1 de março de 2007

em ORLANDO por Virginia Woolf

Talvez a maneira de apertar a fivela do tornozelo, ou a sua posição inclinada, ou o longo isolamento de Orlando, ou a natural simpatia dos sexos, ou o vinho de Borgonha, ou o fogo – qualquer dessas causas pode ter tido a culpa; pois certamente há culpa de um lado ou de outro, quando um cavaleiro da estirpe de Orlando, recebendo uma senhora em sua casa, e sendo ela bastante mais velha, com uma cara de uma jarda de comprimento e olhos saltados, vestida de modo bem ridículo, com um manto e um capuz, apesar do calor – há culpa quando um cavaleiro é tão violentamente dominado por uma espécie de paixão que o obriga a abandonar o quarto.
Mas que espécie de paixão era essa? podem perguntar. E a resposta tem duas caras, como o amor. Pois o amor – mas deixando de parte o amor, por um momento, o fato real era o seguinte:
Quando a Arquiduquesa Harriet Griselda se inclinou para apertar a fivela, Orlando ouviu, súbita e inexplicavelmente, o longínquo bater de asas do amor. A distante agitação dessas branda plumagem despertou nele mil lembranças de águas correntes, de delícias na neve e de perfídias na inundação; e o som aproximou-se; e ele estremeceu e corou; e comoveu-se como nunca imaginara poder comover-se de novo; e estava pronto a levantar as mãos e deixar que o pássaro da beleza pousasse nos seus ombros quando – horror ! – um ruído como o dos corvos abatendo-se sobre as árvores ressoou; o ar pareceu obscurecer-se com ásperas asas negras, rouquejaram vozes, pedaços de palha, ramos, penas caíram; e plantou-se-lhe nos ombros a mais pesada e repugnante das aves, que é o abutre. Precipitou-se, então, para fora do quarto e mandou o lacaio acompanhar a arquiduquesa à sua carruagem.
Porque o amor, a que agora podemos voltar, tem duas faces: uma branca, outra negra; dois corpos: um liso, outro peludo. Tem duas mãos, dois pés, duas caudas, dois, na verdade, de cada membro, e cada qual é o exato reverso do outro. No entanto, tão estreitamente se acham unidos que é impossível separá-los. Neste caso, o amor de Orlando dirigiu seu vôo para ele com a sua branca face revelada e o liso e adorável corpo à mostra. Foi-se aproximando cada vez mais, em lufadas de pura delícia. Repentinamente (ao avistar, decerto, a arquiduquesa), rodou, tomou o outro aspecto, apresentou-se negro, peludo, brutal; e isto era o abutre Luxúria, não Amor, a ave-do-paraíso que batia as asas, repugnante e asqueroso nos seus ombros. Por isso fugiu, por isso foi buscar o lacaio.
Mas a harpia não se expulsa tão facilmente.

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